5 de novembro de 2007

Cidadãos de Gulag

Foi uma reacção involuntária. Uma daquelas coincidências, alías, sincronismos da vida. Entrei na camioneta e começa a tocar a Gulag Orkestar no meu iPod. A camioneta arranca e sinto-me em Gulag - seja lá onde isso for, se é que é o nome de uma cidade. Falta uma paisagem amarela, de terra batida. Mas é de noite, serve de desculpa. As pessoas não usam turbantes, nem são vagabundos esfarrapados, mas o ambiente é cinemático, uma daquelas cenas em câmara lenta de um autocarro numa zona inóspita como no filme Babel. Encontro um lugar para me sentar e tento procurar as diferenças entre a camioneta real e a imaginada, mas o ambiente é igualmente hostil. Pessoas carrancudas, umas com ar mais ameaçador do que outras... Reparo no senhor que vai do outro lado. Trinta e poucos anos, com ar de quem tem a vida completamente arruinada, provavelmente a ressacar de uma dependência qualquer. Reparo que, apesar de termos frio, ele abre o vidro, despe o casaco e fica em t-shirt, como se tivesse calor.

Se fosse apenas um filme, estaria a viajar em Gulag, numa aventura perigosa que me levaria a um destino fascinante, um tesouro perdido ou um daqueles romances mágicos... mas não. Estava ali, a morrer de frio por causa de alguém que morria de calor, no meu caminho habitual, rodeado de gente nos seus caminhos habituais. Não tinha uma recompensa à espera, era apenas mais uma viagem de camioneta, de noite. Então deixo as pessoas assumir novamente o papel de figurantes mal encarados - se não interagir com eles, pode ser que tudo corra bem. Observo através do vidro um mundo de luzes amareladas que passam por mim sem ser vistas: vejo mais além a projecção de um sonho, a conquista da independência. Vejo o tempo que falta, o que me falta fazer. Vejo os perigos, que são como andar em Marrocos ou estar perdido no México à procura de ajuda... Mas sou despertado pelo tremor da camioneta num solavanco, reparo em quão longe está tudo aquilo com que estava a sonhar e apercebo-me da velocidade vertiginosa com que tudo se aproxima...

3 comentários:

Nuno Mendes disse...

Às vezes não resta muito que sonhar para nos afastarmos um pouco da realidade que nos rodeia...
Eu próprio o costumo fazer diariamente, mas é pena que elementos da realidade nos puxem de volta para ela.

Sim, é o muito que podemos fazer em certas situações.

João Miranda disse...

Os sítios onde o génio de Beirut nos leva!!!

Telmo Couto disse...

Sim... é como se cada música tivesse um universo inteiro dentro de si própria, dá mesmo asas à imaginação! :)